Justiça:
restaurar ou instituir?
Prof. José André da
Costa[1]
O que
evoca em nós a palavra justiça? Temos como praticar a justiça? Como fazer
justiça ao que sofre a injustiça? Mas, que é justiça? A justiça pode ser
restaurativa, como hipótese de que se pode fazer justiça à vítima, mas isso é
possível? Entre a vítima e o algoz, de que lado fica a justiça? O agressor
comete a violência à vítima, que fica injustiçada, o assassinato é a violência
que ausenta o vitimado radicalmente: como é possível restaurar e fazer justiça
ao assassinado, se está ausente? Por outro lado fica também difícil aceitar que
entre assassino e assassinado (a vítima) possa haver espaço para instituir
justiça. Até que ponto a justiça não é mais institutiva (contra o instituído)
que restaurativa?
Sentimos
tanto a justiça como a injustiça. Frente à injustiça é possível articular a
justiça como restaurativa do prejuízo causado à vítima. Assim, é preciso
instaurar a justiça no conflito antes que ele se transforme em violência. É
preciso primeiro instaurar a justiça para depois pensar na possibilidade de
restauração. Mais do que isso, a justiça é antes institutiva do humano,
anterior inclusive à instauração e à restauração. A restauração só é possível depois
da violência consumada, depois da agressão que, muitas vezes, termina no
assassinado: mas, é possível restaurar a justiça? Como avaliar se um ato fez
justiça e se a justiça foi feita em ato? A justiça é sempre uma atitude
criativa que dignifica o ser humano e a injustiça é um ato que atenta contra a
dignidade do ser humano. A injustiça dá o que pensar... E a justiça?
O pensar
e o criar são os primeiros conteúdos que constituem a aventura da convivência
humana. Por isso, a nossa relação primeira é sempre plural, porque tanto a
justiça como a injustiça só são praticáveis na relação múltipla. A todo
instante, em todas as nossas ações somos chamados à responsabilidade para
transformar nossos atos em um agir que se justifique a justiça. Mas é possível
ser justo com o Outro?
Falar
do Outro não é estar perto de quem se aproxima de nós, mas é falar da resposta
que dou à interpelação dele. Mas quem é esse Outro? Esse Outro não é só meu
amigo/a, vizinho/a, irmão/ã. A relação com o Outro nos leva de imediato a
reposicionar o nosso modo de ser com ele, exigindo proximidade e convivência. A
relação com Outro não é de tolerância, mas de solidariedade, porque tolerar é necessário,
mas insuficiente, pois se trata de mais, de abrir concessão ao Outro. A
resposta à interpelação do Outro abre a possibilidade de aceitação e de
convivência com ele sem estratégia. A solidariedade é aceitar presença do Outro
com quem preciso conviver. Ele bate à minha porta e cruza meu caminho sem aviso
prévio. A solidariedade é a face material da justiça, como ato primeiro do
relacionamento humano. O outro nos cumprimenta e clama por
hospitalidade/acolhida. Sobre o Outro não tenho qualquer controle. Ele pode ser
cordial ou agressivo comigo e dele posso esperar afabilidade e agressividade.
Encontrar com o Outro ou ir ao seu encontro é sempre é um ato de liberdade. A
questão de fundo é: é possível encontrar com o Outro, o diferente, numa relação
rosto a rosto, numa relação de “olho no olho”? Como é possível ouvir a palavra
do Outro? Estar no “espaço” da justiça significa dizer ao Outro a dor da
agressão dele ou escutar os motivos da violência por ele sofrida. Neste
sentido, a justiça é instituinte.
O
exercício da justiça acontece no encontro plural dos seres humanos diferentes.
Só assim é que pode haver lugar para a justiça ou para a indiferença com o
Outro. Olhar o rosto do Outro é uma atitude ética. Por isso visualizar o rosto
do agressor já é um modo de falar-lhe e de abrir o caminho para a
responsabilidade e a solidariedade na relação entre agressor e agredido. É
neste universo adverso que se abre a possibilidade do diálogo ético de respeito
com a alteridade do Outro. A reflexão é perguntar o modo como vivemos, como se
dão as relações, no fundo é saber como conduzimos a resolução dos conflitos. Se
a justiça é a “meta” para mediação dos conflitos, então a reflexão racional
resulta das perguntas como uma forma de convite para abrirmos à interpelação do
Outro. Mas, a justiça é também condição para toda e qualquer mediação,
instituinte, portanto, de qualquer relação possível.
A
convivência é mais do que tolerância, porque exige pensar e responder ao Outro
que bate à porta clamando por justiça. Responder ao apelo do Outro é um gesto
de hospitalidade que me leva a conviver com ele. Fazer justiça à vítima é um
gesto de compromisso ético. Isto começa no olhar, porque o olhar já é palavra e
a resposta ao olhar já é pronunciamento de acolhimento ou de rejeição da
possibilidade do diálogo. A justiça é, antes de qualquer resultado calculável
ou de cronologia, um direito da vítima à palavra. Mas como a vítima fala? Só
tem sentido falar de justiça restaurativa se ela assegurar o direito da vítima pronunciar
sua palavra. Mas isto é, antes, institutivo do que restaurativo! Se justiça
restaurativa dá que o pensar, a justiça institutiva é condição para que aquela possa ser pensada.
[1] Professor e diretor-geral do IFIBE.
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