sexta-feira, 23 de março de 2012

Justiça: restaurar ou instituir?


Justiça: restaurar ou instituir?

Prof. José André da Costa[1]

O que evoca em nós a palavra justiça? Temos como praticar a justiça? Como fazer justiça ao que sofre a injustiça? Mas, que é justiça? A justiça pode ser restaurativa, como hipótese de que se pode fazer justiça à vítima, mas isso é possível? Entre a vítima e o algoz, de que lado fica a justiça? O agressor comete a violência à vítima, que fica injustiçada, o assassinato é a violência que ausenta o vitimado radicalmente: como é possível restaurar e fazer justiça ao assassinado, se está ausente? Por outro lado fica também difícil aceitar que entre assassino e assassinado (a vítima) possa haver espaço para instituir justiça. Até que ponto a justiça não é mais institutiva (contra o instituído) que restaurativa?   
Sentimos tanto a justiça como a injustiça. Frente à injustiça é possível articular a justiça como restaurativa do prejuízo causado à vítima. Assim, é preciso instaurar a justiça no conflito antes que ele se transforme em violência. É preciso primeiro instaurar a justiça para depois pensar na possibilidade de restauração. Mais do que isso, a justiça é antes institutiva do humano, anterior inclusive à instauração e à restauração. A restauração só é possível depois da violência consumada, depois da agressão que, muitas vezes, termina no assassinado: mas, é possível restaurar a justiça? Como avaliar se um ato fez justiça e se a justiça foi feita em ato? A justiça é sempre uma atitude criativa que dignifica o ser humano e a injustiça é um ato que atenta contra a dignidade do ser humano. A injustiça dá o que pensar... E a justiça? 
O pensar e o criar são os primeiros conteúdos que constituem a aventura da convivência humana. Por isso, a nossa relação primeira é sempre plural, porque tanto a justiça como a injustiça só são praticáveis na relação múltipla. A todo instante, em todas as nossas ações somos chamados à responsabilidade para transformar nossos atos em um agir que se justifique a justiça. Mas é possível ser justo com o Outro?
Falar do Outro não é estar perto de quem se aproxima de nós, mas é falar da resposta que dou à interpelação dele. Mas quem é esse Outro? Esse Outro não é só meu amigo/a, vizinho/a, irmão/ã. A relação com o Outro nos leva de imediato a reposicionar o nosso modo de ser com ele, exigindo proximidade e convivência. A relação com Outro não é de tolerância, mas de solidariedade, porque tolerar é necessário, mas insuficiente, pois se trata de mais, de abrir concessão ao Outro. A resposta à interpelação do Outro abre a possibilidade de aceitação e de convivência com ele sem estratégia. A solidariedade é aceitar presença do Outro com quem preciso conviver. Ele bate à minha porta e cruza meu caminho sem aviso prévio. A solidariedade é a face material da justiça, como ato primeiro do relacionamento humano. O outro nos cumprimenta e clama por hospitalidade/acolhida. Sobre o Outro não tenho qualquer controle. Ele pode ser cordial ou agressivo comigo e dele posso esperar afabilidade e agressividade. Encontrar com o Outro ou ir ao seu encontro é sempre é um ato de liberdade. A questão de fundo é: é possível encontrar com o Outro, o diferente, numa relação rosto a rosto, numa relação de “olho no olho”? Como é possível ouvir a palavra do Outro? Estar no “espaço” da justiça significa dizer ao Outro a dor da agressão dele ou escutar os motivos da violência por ele sofrida. Neste sentido, a justiça é instituinte.
O exercício da justiça acontece no encontro plural dos seres humanos diferentes. Só assim é que pode haver lugar para a justiça ou para a indiferença com o Outro. Olhar o rosto do Outro é uma atitude ética. Por isso visualizar o rosto do agressor já é um modo de falar-lhe e de abrir o caminho para a responsabilidade e a solidariedade na relação entre agressor e agredido. É neste universo adverso que se abre a possibilidade do diálogo ético de respeito com a alteridade do Outro. A reflexão é perguntar o modo como vivemos, como se dão as relações, no fundo é saber como conduzimos a resolução dos conflitos. Se a justiça é a “meta” para mediação dos conflitos, então a reflexão racional resulta das perguntas como uma forma de convite para abrirmos à interpelação do Outro. Mas, a justiça é também condição para toda e qualquer mediação, instituinte, portanto, de qualquer relação possível.
A convivência é mais do que tolerância, porque exige pensar e responder ao Outro que bate à porta clamando por justiça. Responder ao apelo do Outro é um gesto de hospitalidade que me leva a conviver com ele. Fazer justiça à vítima é um gesto de compromisso ético. Isto começa no olhar, porque o olhar já é palavra e a resposta ao olhar já é pronunciamento de acolhimento ou de rejeição da possibilidade do diálogo. A justiça é, antes de qualquer resultado calculável ou de cronologia, um direito da vítima à palavra. Mas como a vítima fala? Só tem sentido falar de justiça restaurativa se ela assegurar o direito da vítima pronunciar sua palavra. Mas isto é, antes, institutivo do que restaurativo! Se justiça restaurativa dá que o pensar, a justiça institutiva  é condição para que aquela possa ser pensada.    

[1] Professor e diretor-geral do IFIBE.

Nenhum comentário:

Postar um comentário